Perigos conhecidos
Às vezes é difícil encontrar o caminho para fora de si mesmo. A princípio, pensei em terminar essa tirinha dizendo “mas é tão tranquilo aqui dentro”, só que não é verdade. Quer um inimigo melhor do que a nossa própria cabeça, que conhece todas as nossas fraquezas? Aqui dentro é uma selva.
Catei umas folhas do meu jardinzinho de varanda e juntei papéis cortados e desenhos para compor o visual da tirinha. Já trabalhei antes com a ideia do coração selvagem, existindo no meio de uma floresta densa que nem um bicho bravo, e gosto muito dela. Então, eu quis trazê-la novamente, dessa vez com o próprio coração sendo a floresta em que a gente se perde, e testei materiais diferentes para tentar chegar num resultado inesperado. Gostei de como ficou. E vocês?
Talvez essa tirinha vire um fanzine novo. Estou pensando num projeto bem caprichado, com impressão em risografia, carimbos e outros detalhes caros e complicados que não fazem o menor sentido para o mercado editorial, mas que o artista independente teima em fazer só para provar que as coisas bonitas têm o direito de existir.
Para terminar de falar sobre a tirinha de hoje, vou deixar o trecho de um texto dela mesma, Clarice Lispector, que li hoje por acaso e senti que combinava. Clarice também pintava e, em seu livro Água viva, protagonizado e narrado por uma artista plástica, ela escreveu:
“Chamo a gruta pelo seu nome e ela passa a viver com seu miasma. Tenho medo então de mim que sei pintar o horror, eu, bicho de cavernas ecoantes que sou, e sufoco porque sou palavra e também o seu eco.
(…)
Mas ninguém pode me dar a mão para eu sair: tenho que usar a grande força — e no pesadelo em arranco súbito caio enfim de bruços no lado de cá. Deixo-me ficar jogada no chão agreste, exausta, o coração ainda pula doido, respiro às golfadas. Estou à salvo? enxugo a testa molhada. Ergo-me devagar, tento dar os primeiros passos de uma convalescença fraca. Estou conseguindo me equilibrar.
Não, isto tudo não acontece em fatos reais mas sim no domínio de — de uma arte? sim, de um artifício por meio do qual surge uma realidade delicadíssima que passa a existir em mim: a transfiguração me aconteceu.”

Um agradecimento
Muito obrigada a todos que leram a edição anterior da newsletter e tiraram um tempinho para votar no meu gibi! Eu quero ser a sua casa venceu o troféu Angelo Agostini na categoria melhor fanzine!
O colega Emerson Coe, ilustrador e quadrinista paraense, escreveu a respeito um texto muito bonito e que me botou lágrimas nos olhos. Ele publicou no mesmo dia em que saiu o resultado do prêmio e queria que constasse uma declaração minha, então, poucos minutos depois de eu descobrir que tinha sido agraciada, ainda zonza, improvisei estas palavras:
“Fico muito feliz e orgulhosa, especialmente porque é um reconhecimento que vem dos leitores, por ser uma votação aberta. Então sinto que estou conseguindo usar os quadrinhos como uma forma de conexão real para além da Internet ou do mercado literário. Gostaria de ver mais artistas do norte indicados no futuro.”
E é isso mesmo. Foram os leitores que me deram esse presente que não só alimenta a minha chama interna, como também ajuda a colocar o meu nome no mapa do quadrinho nacional — um mapa que, como aponta Emerson, ainda representa tão pouco do Brasil para além do sudeste.
Obrigada, obrigada, obrigada!
Novidade
Chegou a segunda leva de plaquinhas decorativas! São dois modelos em ferro esmaltado, iguaizinhos às placas de rua de verdade:
Cada uma custa R$120,00. Quem se interessar pode mandar um e-mail para ltdathayde@gmail.com informando o seu CEP e o modelo desejado para calcularmos o valor do envio!
Recomendo
✸ I Saw the TV Glow, de Jane Schoenbrun, disponível para locação no Prime ou através de meios alternativos.
Um filme esquisito mas, ao mesmo tempo, familiar. Quando criança, eu passava tempo demais na frente da TV assistindo animes e séries que ninguém lembra que existem, tipo As Aventuras de Shirley Holmes e O Mundo Secreto de Alex Mack. Talvez por isso eu tenha me reconhecido mais do que gostaria em Maddy e Owen, dois adolescentes queer unidos pela paixão por uma série que é mais importante para eles do que a vida real cinzenta e opressora. Um dia, Maddy desaparece e, logo em seguida, a série é cancelada. A partir daí, a realidade de Owen começa a parecer cada vez mais com uma ilusão terrível criada pelo Sr. Melancolia, vilão da série, para impedi-lo de encontrar sua amiga e viver sua verdadeira vida. O real e o imaginado se confundem e o visual da série, que é uma mistura de live action trash dos anos 90 com a estética dos filmes de Georges Méliès, é uma delícia.
✸ Mulher, vida, liberdade, organizado pela maravilhosa Marjane Satrapi, publicado pela Quadrinhos na Cia. e disponível em livrarias virtuais e físicas Brasil afora.
Em 2022, a estudante iraniana Mahsa Amini foi presa e assassinada pela polícia religiosa do Irã por não estar usando o véu corretamente. Esse evento desencadeou uma onda de protestos no país cujo lema era “mulher, vida, liberdade”. O livro reúne 25 HQs escritas e desenhadas por vários artistas ligados ao Irã e que contam a história da revolução islâmica de 1979, explicam o contexto social e político do país desde então e homenageiam as centenas de pessoas mortas pelo regime por protestarem contra a discriminação e violência praticadas pelo governo contra as mulheres. É uma leitura intensa e extremamente relevante para conhecermos as consequências do fundamentalismo religioso na política, bem como a força e solidariedade de um povo.
Obrigada pela companhia! Sinta-se à vontade para deixar um comentário ou responder a este e-mail. Caso queira, você pode me pagar um cafezinho
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Até a próxima,
Laura.
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"Oxóssi mandou chamar de dentro do coração, que é mata onde ninguém vai por medo da escuridão." Música de Sérgio Pererê. 💚
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